Racionais Mcs, masculinidade e o choro de Jesus

O grupo de rap Racionais MCs tem tomado conta de boa parte da minha consciência e percepção de realidade nesses últimos tempos, principalmente nesse semestre, já que meu TCC tem base em parte da obra do grupo, apesar da ampliação do olhar ser muito maior que o acadêmico.

Racionais e o próprio rap foram postos na minha vida, ainda quando criança ou pré-adolescente, como músicas proibidas de ouvir na minha casa, onde pelo discurso intenso, cru e necessariamente agressivo sobre o tecido de realidade que permeia os pobres, pretos e favelados eram demais para ouvir. Era bruto, visceral e real demais. Era “música de bandido”, como diziam meus pais, apesar de viver realidades um tanto parecidas, sendo eu e meu pai, pretos, família pobre dum bairro onde a divisão de no alto, vive a galera pobre e logo no bairro debaixo ter, literalmente, casa com heliporto, numa cidade que, hoje em dia, deve ter por volta de uns 50 mil habitantes.

Apesar disso, não é uma mentira o que meus pais diziam, de fato, há aspectos de uma “música de bandido”, em que é mostrado de forma primorosa, como uma fotografia em áudio, como era e ainda é — com nuances de diferenças pequenas e insuficientes demais — a vivência naquele contexto. Drogas, violência, misoginia, brutalidade, assalto, machismo, morte, racismo. A demonstração clara de como o Brasil permitiu e permite o genocídio pobre, o genocídio negro, com a negligência do estado em relação a esses, na cultura colonizada e encrustada na mente submissa da maioria dos brasileiros, importando e engolindo com um sorriso os piores e nojentos gostos europeus.Nascido e criado num ambiente selvagem, há de se ser selvagem, como diz Brown em outra música de uma beleza sublime, sendo essa “Negro Drama”“Vim da selva, sou leão, sou demais pro seu quintal”.

O discurso no rap vem como socos na cara em sua maioria, tomando a expressão poética e afogando a mente de quem ouve atentamente, contando histórias como elas são. Pesadas demais, conscientes demais, reais demais. Raramente ficção.

Mas não só.

racionais
Foto: Google

Jesus Chorou é uma música do álbum “Nada como um dia após o outro dia”, lançado em 2002, que veio após o impactante e genial “Sobrevivendo no Inferno”, merecidamente tido como obra prima do grupo, do rap e da música brasileira em geral — apesar do Brown não gostar muito — e essa mesma música, desse mesmo grupo, nesse mesmo contexto, fala com uma bruta delicadeza e maestria sobre fragilidade, angústia, choro, frustração, tais sentimentos explícitos de uma forma que beira o íntimo.

A música é iniciada com sons de trovões, chuva, vento, impondo uma atmosfera melancólica, levemente aterrorizante e, posterior a isso, entra a voz de Mano Brown declamando uma poesia, apenas com os sons antes apresentados e a voz, perguntando “O que é, o que é?”, descrevendo uma charada, dando características de algo, algo que inicialmente soa óbvio, mas, após alguns versos é notado um óbvio esquecido.

Charada que ele mesmo responde no decorrer da poesia, deixando cristalizado que é sobre lágrimas, não só lágrimas num geral, mas suas lágrimas.

Nessa poesia-prólogo da música é visto um tipo de vulnerabilidade e fragilidade de um homem que soa incomum perante o imposto o goela abaixo do machismo e o patriarcado. Mas não só um homem comum. Um homem preto, da periferia e do rap.

A masculinidade num senso geral se tornou algo extremamente bizarro e tóxico no decorrer da história, o homem como ser de valores e costumes em sua maioria falhou, é nítido essa visão, sempre fora algo problemático mas tiveram que cuspir na nossa cara para que um entendimento, por menor que seja, começasse a transpassar esse casulo escroto que foi criada culturalmente para e pelos homens.

A masculinidade é frágil demais. É bebido da ilusão de ter uma armadura firme e reluzente, quando, na verdade, não é diferente de um tecido fino, rasgado e feio.

Isso pesa ainda mais no homem preto, vindos de uma história num país extremamente escravocrata, onde para se ter fio de dignidade foram preciso morrer, literalmente, milhões de negros e negras, foi dado sangue e tripas para isso, foi necessário selvageria, agarrar com unhas e dentes para que direitos conquistados. Dos grilhões para as correntes invisíveis, do capitão do mato a violência policial, do tripalium torturante a falta de oportunidade de trabalho, do antigo “cale-se ou morra” ao novo “cale-se ou morra”.

É mais que compreensível e quase necessário criar uma crosta frente a isso. A crosta que é dado desde o nascimento é: Ser forte, ser inabalável, ser grande, ser foda, ser homem. E ser preto, em sua maioria, é ter que ser mais ainda em tudo. Ser mais que homem.

E com isso, é confessado “E eu que me julguei forte, eu que me senti, serei um fraco quando outras delas vir” e versos depois “Do que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável?” num poema em meio a tempestade, terminando o poema com: “Diz que homem não chora? Tá bom, falou.”

A batida inicia e o canto é posto para cantar.

Vocais inteiros feitos por Mano Brown, usando diferentes tons de vozes e interpretações para fazer outros personagens no enredo e também se colocando como personagem. Embala os que ouvem num momento íntimo de dúvidas e desesperadas “O que fazer quando a fortaleza tremer e quase tudo ao seu redor melhor, se corrompeu?”, angústias de tirar o sono, “Durmo mal, sonho quase a noite inteira. Acordo tenso, tonto e com olheira. Na mente, sensação de mágoa e rancor, uma fita me abalou na noite anterior.”, nos mostrando a conversa que o abalou a ponto de deixar tonto, notando mágoa e rancor nos sentimentos que é uma conversa que tiveram sobre ele, o personagem, colocando características que não corroboram com o que ele percebe de si, a ponto de ele desabafar: “Não entende o que eu sou, não entende o que eu faço, não entende a dor e as lágrimas do palhaço.” para logo depois falar sobre os ensinamentos da mãe e expressar o amor por ela.

Pergunta: “Cadê meu sorriso? Onde tá? É, quem roubou?”, chegando numa resposta ampla, sólida e triste, dizendo “Humanidade é má”, ilustrando ainda mais dizendo que até Jesus chorou na sentença seguinte.

Jesus, símbolo e imagem de um conhecimento massivo quase incontável. Para os que creem: O filho de Deus, o messias, o santo, o salvador, o todo-poderoso, a representação do bem, o que se sacrificou por nós. Absolutamente o absoluto. Ainda assim: O homem. E mesmo esse homem, mesmo o filho de Deus chorou. Perante a imagética de Jesus, do símbolo religioso e moral, do Deus que quis ser homem, tomado, muitas vezes, como ente incriticável, Mano Brown talha com as palavras na música uma constatação simples: Se até Jesus chorou, que homem sou se não chorar ou se não puder chorar?

Continua a música dizendo que ele é seu próprio inimigo, que as lembranças más vêm e os pensamentos bons vão enquanto a chuva cai lá fora e agora, sem qualquer tipo de interpretação diferente, deixa explicito o pedido de ajuda, dizendo de forma expressamente concreta e literal: Me ajude, sozinho penso merda pra caralho.

Segue o canto e ao final da música diz a frase “Chora agora, ri depois” me fazendo entender como que num conselho de acalento, de identificação, numa frase que é como uma mão ao ombro dizendo que tudo bem chorar e, logo após, relembra e repete algumas vezes: “Aí, Jesus chorou” até de fato o término da música.

Há uma desconstrução de imagem e de personagem que não só mostram situações e sentimentos, mas mostram o âmago de um ser humano. Ser humano esse que tem consigo o estigma carregado de ter uma imagética bruta e forte, junto a própria postura e os discursos incisivos, ainda mais dentro do rap que, desde sua eclosão, sempre fora dominado por homens e pelo machismo — louvai as minas do rap, desde Stefanie até Drik Barbosa e muitas mais — além da própria performance comum aos artistas de rap que acompanham o discurso. Também como homem, homem preto que, em distintas situações e vivências, é esquecido que sente dor e os sentimentos que amarguram a existência humana. No cerne de toda a música, num resumo cretino, percebo que antes de tudo, ali está um humano.

Pois é, como dito: Diz que homem não chora?

Tá bom,

Falou.

Por: Matheus Morais Inácio

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