A insubmissa Carolina Maria de Jesus

(por Larissa Bontempi)

“…Fui na sapataria retirar os papéis.

Um sapateiro perguntou-me se meu livro é comunista.

Respondi que é realista.

Ele disse-me que não é aconselhável escrever sobre a realidade.”

 

A única referência que eu tinha de Carolina Maria de Jesus antes de ler Quarto de Despejo: Diário de uma favelada (publicado pela primeira vez em 1960) é que a escritora era uma catadora de papéis e foi “descoberta” por um jornalista, que decidiu publicar seus diários. Hoje, 14 de março, é comemorado o aniversário da autora, bem como o meu. Passei o último mês lendo a obra prima e maravilhosa da Carolina e decidi escrever sobre por que Quarto de despejo não é apenas o diário de uma favelada.

Carolina nasceu em Minas Gerais, mas aos 23 anos mudou-se para São Paulo. Passou a maior parte da sua vida morando na favela do Canindé, onde catava papel e vivenciou todas os acontecimentos narrados no livro. Apesar de ter concluído apenas o segundo ano da escola primária, tinha um gosto voraz pela leitura e escrevia quase diariamente.

 

“Quando fico nervosa, não gosto de discutir. Todos os dias eu escrevo.

(….)

Gosto de manusear um livro, o livro é a melhor invenção do homem.

(…)

Quiz saber o que eu escrevia. Eu disse ser o meu diário.

– Nunca vi uma preta gostar tanto de livros como você.

Todos tem um ideal. O meu é gostar de ler.”

O amor pela leitura e pelo ofício da escrita podem ter contribuído para ela ter desenvolvido o senso crítico elevado, mas a consciência de gênero, raça e classe que ela tinha vai muito além da educação formal.

 

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Carolina prova que para conhecer-se e posicionar-se enquanto mulher no mundo, não é necessário ter um arcabouço teórico. A partir de sua vivência, ela compreendia o que significava tentar ser uma mulher livre, mãe solo, em plenos anos 50.

“Não casei e não estou descontente. Os [homens] que preferiu-me eram soezes e as condições que eles me impunham eram horríveis.

(…)

Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar. Aqui, todas impricam comigo.

(…)

O Senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver para o meu ideal.”

Além dessa consciência de gênero, como disse anteriormente, Carolina sabia muito bem o que significava ser negra e pobre e, consequentemente, marginalizada. Mas não é por estar à margem que ela se alienava: profere críticas contra as opressões sofridas pelo povo preto e pelos trabalhadores.

“Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa árvore O guarda civil é branco. É há certos brancos que transforma o preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata?

(…)

Depois voltei e fiquei pensando na minha vida. O Brasil é predominado pelos brancos.

(…)

Alguns homens em São Paulo

Andam todos carimbados

Traz um letreiro nas costas

Dizendo onde é empregado”.

Por fim, a maior revolta que noto em Carolina de Jesus é a revolta contra os políticos e toda a estrutura do Estado. O livro justamente se chama Quarto de Despejo porque ela constantemente afirma que a cidade é a sala de visitas da cidade e a favela é o quarto de despejo. O pobre é despejado para lá e preterido pelo estado, como Carolina repete inúmeras vezes.

“O que eu aviso aos pretendentes a política é que o povo não tolera fome. É preciso conhecer a fome para descrevê-la.

(…)
Quando um político diz nos seus discursos que está do lado do povo, que visa incluir-se na política para melhorar as nossas condições de vida, pedindo o nosso voto, prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depis, divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade.

(…)

A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso país, tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos, fraquíssimos. E tudo o que está fraco, morre um dia.”

Quarto de Despejo pode ser visto sob vários ângulos, é uma obra socialmente pertinente e, pese o realismo e o tom autobiográfico, literariamente muito bonita! Muito pode ser dito sobre este livro e sobre Carolina de Jesus, mas ao mesmo tempo, não basta ler o que se diz: só a leitura dessa obra nos leva a compreender quem foi essa mulher.

Resolvi abordar aqui a revolta e o fato de Carolina não abaixar a Cabeça pras opressões que sofria. Sua escrita é sua maior marca de insubmissão: ela sabia muito bem quem era e o que queria; o fato de escrever e refletir sobre seu entorno e suas vivências a empoderava e ela não se via obrigada a dar satisfações a ninguém.

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