O poder libertador da imagem

Por Mariani Pontes

João Victor Medeiros, 26, é um fotógrafo, documentarista e jornalista musical, nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais. O seu trabalho conversa com diferentes momentos de sua própria vivência enquanto jovem adulto negro: passado, presente, futuro se encontram e se cumprimentam. Há um sentimentalismo inevitável nas suas imagens e nas suas palavras também. O ofício de João como comunicólogo é atendido pelo seu comprometimento em refletir, da maneira mais terna, o mundo em sua volta. Inserido em diferentes espaços culturais, lhe urge a necessidade de se expressar e espelhar os seus tempos. Nesse diálogo – trocado por e-mail – João refletiu sobre os pilares fundamentais de seu trabalho, o que norteia as suas ideias e o seu primeiro fotolivro, ‘O Menino Me dá a Mão’, lançado neste ano.

Imagem: Karina Passos / Instagram / Reprodução

Queria direcionar o vetor da nossa conversa a dois pontos: o que é imagem e o que é palavra, e como a música conecta essas duas coisas para você. Mas, primeiramente, olhando o site que reúne os trabalhos que você produziu nesses anos de atividade, eu percebo, seja nas fotografias que você tira ou nos textos que você escreve, muito cuidado, intenção e humanidade. Eu, dessa forma, enxergo o seu trabalho como distintas mensagens de afeto para as coisas, as pessoas, o slugares e os momentos que te formaram. O que te motiva a criar (em imagem ou texto)? Para quem você se comunica?

João: É muito interessante que você tenha essa percepção das mensagens de afeto acerca do meu trabalho. Certa vez na terapia eu disse que, todo trabalho pessoal meu, é na verdade uma carta de amor (os mais variados tipos de amor). Em texto, acho que tenho muito mais clareza no que me motiva. Costumo me descrever às vezes como arqueólogo cultural, especialmente com meu trabalho como jornalista. Escrevendo sobre música periférica, principalmente algo tão contemporâneo quanto o Rap, eu percebo que muitas histórias e acontecimentos não são ou não foram registrados com a devida importância que eles têm. Então o que me motiva escrevendo é compartilhar com as pessoas essas conexões que faço enquanto arqueólogo cultural, ao mesmo tempo que documento, registro, pesquiso e me aprofundo em atos, músicas, artistas que estão realizando seu trabalho no agora mas que sei que serão importantes no futuro, quando a gente quiser olhar para trás e entender o que tava acontecendo na música em determinada época, etc.. É bem o trabalho de um arqueólogo mesmo, escavar, fazer conexões, registrar. Com a imagem, e com a fotografia, acho que é muito mais paixão. Não tenho com muita clareza o que me motiva, só sei que sou profundamente apaixonado por imagens. E com certeza me comunico principalmente para outras pessoas negras e brasileiras.

Imagem: João Medeiros / Instagram / Reprodução

Acredito que a nossa visão de mundo é construída, em sua maior parte, ainda na infância. É o período formativo dos nossos princípios que, talvez, a gente necessite desconstruir ou aprimorar mais tarde na vida. Uma criança sem rosto estampa a capa de seu primeiro fotolivro ‘O Menino Me Dá a Mão’. Você se sente próximo desse menino? O quão presente são as lembranças desse período da sua vida no que você produz agora enquanto um jovem adulto?

João: A escolha por esse menino de costas e sem rosto para a capa do livro é exatamente isso que você descreveu na pergunta, é pra gerar identificação. Esse menino que pode ser eu, como pode ser tantos outros garotos negros. E a fotografia é a coisa mais próxima que temos de uma máquina do tempo, creio eu. Então sim, tudo a ver com memória. Fotografo muito pra me lembrar das coisas, pessoas, situações, me sinto sim próximo desse menino, do meu próprio menino. Parece piegas – e realmente é – mas não abandonar nossa criança interior nos ajuda muito a manter a esperança na vida e, sobretudo, a diversão. Minha infância foi bem divertida, brinquei na rua, na cachoeira, na praia, na roça e tudo isso está no livro. Infância é o tema central deste trabalho, mas no meu processo criativo, na minha fotografia e em tudo que faço na vida, tento me divertir como eu me divertia quando era criança. É muito fácil a gente se tornar um adulto que não se diverte.

Imagem: João Medeiros – Sô Edições / Instagram / Reprodução

Ainda sobre afeto e sobre as coisas que te formaram, conversar com você também convida a falar sobre negritude na foto e no texto. E é interessante pensar ainda como a música une esses elementos. agnaldo timoteo – perdido na noite.mp3, como você colocaria na legenda de uma de suas fotografias no Instagram. Me fala sobre a celebração de pessoas negras na sua arte e se a música – o Rap, em específico – teve algum papel nisso.

João: O Rap definitivamente teve papel nisso, minhas primeiras vezes fotografando foram numa roda de rima. É indissociável. Este ano eu estreio uma exposição no Museu da Imagem e do Som em São Paulo só com fotografias de Rap. Na minha inscrição para a convocatória, eu referenciei o trabalho do Walter Firmo fotografando os sambistas: Pixinguinha, Cartola,Clementina de Jesus. Assim como o Rap como música popular periférica dá continuidade e atualiza muitos discursos que estavam presentes no samba, sinto que minha fotografia dá continuidade nessa tradição do retrato, muito trabalhada pelo Walter, que é uma baita referência minha. E me apropriar da tradição do retrato, que parte muito de uma perspectiva antropológica racista que data do início da fotografia, é tomar essa ferramenta que é a máquina fotográfica para produzir retratos mais humanos, horizontais e justos de outras pessoas negras, sejam artistas ou não. Essa retomada é, há bastante tempo, um movimento comum a grande maioria dos fotógrafos negros, indígenas ou de populações marginalizadas em todo o mundo.

Imagem: João Medeiros / Instagram / Reprodução

Você já trabalhou com artistas como BK’ e Don L, você também já escreveu sobre eles. No fim das contas, são várias as inspirações, são vários os interesses. Separando o jornalismo da fotografia como dois espaços diferentes, em que lugar você se sente mais pertencente? Ou não existe necessidade de comparar ambos?

João: Por um tempo eu achava meio chato “ser” jornalista, até que na pandemia, sem poder fotografar, em muitos momentos as contas do mês foram pagas escrevendo palavras. A partir daí, comecei a me identificar mais como jornalista e a buscar mais pares na profissão fazendo um jornalismo afiado e que me inspirava. Sou mais fotógrafo do que jornalista, com certeza. Minha grande, infinita e maior paixão é a imagem.

O mercado da arte possui diferentes camadas articuladas pela elite de nosso país e a fotografia como mercado não foge disso – sendo ainda “preservada” por barreiras de raça, classe e gênero. Fale um pouco sobre o momento que você vive hoje e como esse projeto nasceu.

João: Esse lançamento ainda não é uma ruptura para mim, porque ele é um livro lançado de maneira independente, numa tiragem pequena, numa publicação de formato super simples (mas ainda assim muito caprichada, com todo respeito! hehe). Mas nada disso tira o brilho do momento. Poder materializar um trabalho é muito legal, fotos são para ser impressas e eu acho que o fotolivro é, cada dia mais, a melhor forma das pessoas consumirem minhas fotografias e de eu construir minha narrativa, mais até do que exposições. No livro a gente tem mais controle sobre o sequenciamento de imagens, tipos de papel, escolhas gráficas e tudo o mais. Tô num momento muito legal da minha carreira, não produzindo muito, mas conseguindo trazer pra vida real, através de livros e exposições, quase tudo que fotografei nesses primeiros cinco, seis anos de fotografia. Isso é muito, muito legal e, pensando agora, é um ciclo se fechando para outros virem. Falando sobre o livro, ele surgiu em um convite da editora independente Sô Edições! Eles têm essa série de fotolivros publicando autores que nunca antes foram publicados. Escolheram um de cada região do país e eu fui o escolhido/convidado do Sudeste. Uma baita honra, porque o Gabriel Cabral e o Lucas D’Ambrosio, que são da editora, conhecem muitíssimo de fotografia.

Imagem: João Medeiros / Instagram / Reprodução

A gente vive em um período bem particular da história, em que a presença online é ubíqua, superestimulada e caótica, muita das vezes. No meio artístico, partindo da noção de que “estar visível” é preciso, existe uma relação entre superexposição e sobrevivência. O Earl tuitou algo em 2019, que não me sai da cabeça desde então: “resist being viral if u tryna reserve and promote some humanity yo !! the rapid ascent is answered with a violent nosedive on some laws of nature shit” [Resista à viralização se você tá tentando preservar e promover um pouco de humanidade! A ascensão rápida é respondida com uma queda livre violenta, é um negócio tipo leis da natureza]. Como resistir a ‘necessidade’ de viralizar?

João: Esse tuíte/pensamento do Earl é foda. Ainda mais pensando que ele foi um cara que viralizou na internet muito rápido e muito novo. Isso trouxe vários problemas pra ele. Eu penso muito sobre esse assunto! Em 2019, quando comecei a trabalhar com o BK’, eu sabia que se meu Instagram, por exemplo, virasse uma galeria de fotos de rappers, eu ia bombar de seguidor, de acessos etc.. Mas não era como eu gostaria de ser reconhecido. Acho que automaticamente eu começaria a replicar a estética das fotos que fossem mais curtidas sem realmente pensar sobre meu trabalho e estética. Nessa época, eu fiz conscientemente o movimento de publicar bem menos fotos do BK’ do que eu estava produzindo. “Resistindo ser um viral”. E isso tem consequências positivas e negativas. Você tem menos seguidores, menos validação, conhece menos pessoas e, ao mesmo tempo, tem menos trabalho. Por outro lado, quem chega a conhecer o seu trabalho, tende a ficar e a se aprofundar na sua obra, ao invés de só estar ali por causa das fotos de Rap (no meu caso). Porque meu trabalho é muito maior do que esse. Então é bom também ter “fãs reais” como diz o Raffa Moreira rs. Tem muita gente com mais seguidores que eu, mas com menos engajamento — isso porque quem me acompanha, acompanha de verdade. Querendo ou não, quando a gente faz essa “resistência” que o Earl menciona, tudo acontece de maneira mais natural, orgânica, fiel e humana, como bem diz o Earl. E é isso que importa pra mim a longo prazo. Penso muito no caso do Febre90s. Os meninos não tem nem um projeto oficial lançado ainda, só singles, e os shows estão sempre esgotados, as camisas que eles colocam a venda dão sold out em dois minutos, absurdo demais hehehe Mas sendo mais objetivo, como resistir a essa necessidade: paciência pra criar uma audiência humana, coragem pra suportar os momentos de frustração (e eventual falta de grana, porque (poder) fazer essa resistência tem muito a ver com isso também) e muita fé na sua verdade e de que seu trabalho é um trabalho para longevidade.

© 2023

Você pode acompanhar o trabalho de João Medeiros no seu perfil do Instagram @pedefeijoao

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